Quando pensamos em riqueza, o senso comum ainda nos remete a cifras, posses e ativos financeiros. Mas, para nós – mulheres que atuam na intersecção entre filantropia, impacto e economia – a riqueza é muito mais do que ter. É a capacidade de influenciar o mundo que vamos deixar para os próximos.
Um estudo global recente da LGT, Wealth for Impact, ouviu mais de 60 herdeiros e herdeiras de grandes patrimônios sobre o que significa “ter riqueza” no século XXI. A conclusão pode surpreender: a nova geração quer mais do que preservar capital, quer gerar transformação. Deseja investir, doar, gastar e transferir com propósito.
É essa mudança de mentalidade que nos inspira. Porque acreditamos que a verdadeira influência de um filantropo – especialmente no Brasil, onde as urgências são tantas – vai muito além do cheque: está em como mobilizamos todo o nosso. Nossa reputação, nosso conhecimento, nossa rede, nosso tempo, nossas escolhas. Tudo conta.
Estamos diante de uma oportunidade histórica de ressignificar a riqueza. Nos próximos anos, assistiremos à maior transferência de patrimônio intergeracional já registrada. Esse momento carrega um potencial real de moldar o futuro – e nos impõe uma pergunta urgente: como estamos colocando esse poder em movimento?
Riqueza não é um substantivo estático, mas uma prática. Uma sequência de decisões. O estudo da LGT propõe uma abordagem holística, articulada em cinco verbos fundamentais: criar, investir, gastar, doar e transferir. Cada um desses verbos representa uma dimensão de escolha e, portanto, um ponto de influência.
Se antes a gestão da riqueza se restringia a preservar e multiplicar ativos, agora ela se conecta a valores, legados e futuros possíveis. Criar riqueza passa a ser sobre gerar soluções. Investir, sobre alocar recursos com consciência. Gastar, sobre consumir com responsabilidade. Doar, sobre devolver à sociedade. E transferir, sobre perpetuar um propósito.
Essa visão amplia o significado da filantropia. Deixa de ser um gesto privado de generosidade e se afirma como uma estratégia pública de transformação sistêmica. E, talvez mais importante, nos desafia a sermos intencionais com todos os tipos de recursos que temos à disposição.
No Brasil, esse olhar se faz ainda mais necessário. A desigualdade é profunda. A complexidade, alta. Mas a potência – humana, cultural, ancestral – é imensa. O que nos falta não são talentos ou causas. Faltam pontes. Faltam estruturas que conectem o capital acumulado ao invisibilizado, mas abundante, capital relacional e comunitário das populações historicamente marginalizadas.
Filantropos que compreendem seu papel público ajudam a construir essas pontes. São construtores de campo, como define a Rockefeller Philanthropy Advisors (RPA) em sua tipologia de arquétipos filantrópicos. Ao colocar sua voz, seu tempo e sua reputação a serviço das causas, abrem portas, distribuem poder e impulsionam soluções sistêmicas. Mais do que perguntar “quanto doar?”, questionam-se: para quê estamos doando? Com quem?
O país oferece um ecossistema vivo para investir em transformação. Aqui, policapital não é só conceito: é ferramenta de sobrevivência e de futuro. Está nos saberes populares e ancestrais, nas soluções coletivas. Está na colaboração entre diferentes formas de poder, inteligências e tempos.
Se a nova geração herda patrimônio e busca propósito, cabe às lideranças atuais pavimentar um novo modelo de influência. Um modelo que reconhece que toda decisão – de doação, de investimento, de consumo, de comunicação é uma declaração pública de valores. Uma escolha sobre o mundo que queremos construir.
Queremos uma filantropia que entenda que riqueza é ferramenta, não fim. Que valorize o gesto privado, mas atue pelo bem coletivo. Que use influência para abrir caminhos, redistribuir capital e deslocar fronteiras. Sobretudo: uma filantropia que entenda que não estamos apenas gerindo recursos. Estamos moldando futuros.
E se, em vez de um substantivo acumulado, “riqueza” passasse a evocar verbos conjugados no plural? Criamos e investimos juntos. Gastamos com propósito. Doamos com coragem. Transferimos com intenção.
Essa é a proposta. Fazer da riqueza um fluxo, não um estoque. Uma energia socialmente ativa. Porque, no fim, o verdadeiro valor do que temos está naquilo que conseguimos construir coletivamente – e que beneficia a muitos, não apenas a poucos.
*Carola Matarazzo é diretora executiva do Movimento Bem Maior; Silvia Bastante de Unverhau, especialista em filantropia global e coautora do relatório Wealth for Impact para a LGT